terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Copos são imorais


Eles estavam lá. Em cima da nossa mesa. Absurdamente limpos. 
Mais do que transparentes. Inquebráveis. Resistindo há anos de convívios, de conflitos.
Eram eles. Delicadamente imortais. Eram para ser frágeis e frágil naquela sala, só tinha eu.

- Foi aí que ela bebeu água. - me surpreendi pensando e logo censurei.

Você dizia:

- Dividimos assim: tapetes com ela, copos comigo. 
Achei que foi bom negócio, esses copos foram presentes de um amigo gringo.

Os tapetes teriam sido tão melhores. Que vontade que eu tinha de ter aquele tapete na 
minha sala, 
que vontade que eu tinha de dormir com você no tapete, de pisar no tapete, de pisar nas 
lembranças que não eram minhas lembranças. Você sem meu ouvir, eu sem te falar. 
Ali parada, estática. Olhando você, que olhava um dos copos com um cuidado, 
com uma dedicação. Me olha! Me olha! 
Eu implorava sem emitir som algum, eu implorava olhando para você. 
Era você que eu olhava ou era sua imagem através do copo? 
Quando me dei conta percebi que você havia colocado o copo
a frente do rosto, só existiam vocês dois, eu era só um utensílio subsitituível. 
Te via torto, te via pelos olhos dela. Sem largar dele - preste atenção: você
passou mais tempo com ele na mao do que comigo na cama aquele dia - 
numa fixação pútrida você ainda dizia.
    - Bonitos não?

    Ao passo que eu respondia:

    - São copos.
    - Isso é cristal.
    - Cristal ou vidro. A mim não importa. Tudo funciona.
    - Você não entende.
    - Por que você não ficou com os pratos ao invés dos copos?
    - Pratos?
    - Você disse que tinham um jogo lindo.
    - Prato a gente tem.
    - Copo também.
    - Você não entende!

    E eu entendia. Tudo. Transparente feito o maldito cristal. Reluzia na minha cara. Você queria era me trair com aquele copo. O copo que foi dela.
    O copo que ela bebeu água. Que cretino! Que desgraçado! É isso o que você queria. Você beijaria o copo com toda a saudade que sentiria dela
    nos dias em que eu não fosse perfeita. Eu que nunca era perfeita. Já posso imaginar a cena, você saindo de manso da nossa cama, morto de
    sede, indo procurar alívio nela, na boca dela, no copo dela. Maldito copo! Por que não os pratos? Prato a gente não põe a boca, prato a gente não desliza lábios, prato a gente não segura na mão. Prato é prato. Copo não. Copo é indiscreto. Minha garganta seca. Água por favor! O copo dela. Não, a minha boca nessa copo não. Pousar a boca onde ela pousou a dela é impudico. Eu não posso. Olho pra boca dele. A boca que eu pousei a minha. Olha pra falta de pudor da minha vida. Corro até a pia. Mato a sede enquanto percebo que nada é capaz de matar a minha loucura.

    Um comentário:

    Who disse...
    Este comentário foi removido pelo autor.